quinta-feira, 20 de setembro de 2007

OS ÚLTIMOS INFORMADORES




É permanente a nossa preocupação pelo estado em que se encontra e pela forma como é tratado o folclore e a etnografia enquanto disciplinas auxiliares da Antropologia Cultural ou Etnologia. Essa preocupação baseia-se não tanto em análises académicas dos conceitos, mas sobretudo em aspectos concretos e objectivos de interpretação das informações e dos legados, materializados em objectos como o vestuário para a etnografia e as músicas, cantigas e danças para o folclore, que são o veículo usual mais utilizado pelos grupos para a sua divulgação.
Assim assumem importância relevante as fontes que nos servem de base à pesquisa. Será consensual a ideia de que para o folclore a melhor fonte é aquela que advém da própria vivência, isto é, recolhida daqueles que um dia foram elementos activos desse legado. Das pessoas que foram receptoras de uma ancestral herança, transmitida naturalmente por via da oralidade, e só por esta via, que a utilizaram sem preconceitos e que a entregam, inevitavelmente com a sua marca, com a mesma simplicidade e orgulho aos seus sucessores.
É cada vez maior a dificuldade em encontrar o “informador ideal”. As transformações que ocorreram um pouco por toda a Europa no durante e pós-revolução industrial e com mais relevância no decurso do século passado foram, de uma forma epidémica, responsáveis pela mudança dos comportamentos sociais dos povos. Tal como uma pedra atirada ao charco, as ondas por ela provocadas irradiaram do centro do velho continente para a periferia, tendo chegado até nós apenas em meados do vigésimo século da nossa era. Este facto, para além das nefastas e óbvias consequências relativas ao nosso desenvolvimento, foi responsável pela preservação de características específicas e particulares que nos identificam e nos tornam diferentes dos outros. Ainda hoje é possível encontrar sobreviventes dessa época. Mas serão eles bons informadores?

Luís Ferreira Machado Drumond, no seu “Estudo do Folclore Terceirense - O Baile Popular Terceirense”, publicado no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira Volume XIII, de 1955, afirma: “Para compreender a psicologia do povo terceirense, para lhe conhecer o carácter alegre e a índole folgazã, em contraste com o seu modo de ser pacato e simples, é necessário estudar as suas canções populares, investigando qual a origem delas, as influências a que estiveram sujeitas e as naturais evoluções que sofreram.
Tal estudo torna-se difícil e complicado, porquanto, os nossos antepassados não se deram ao trabalho de registar o aparecimento e a evolução das suas modinhas populares.
A ausência de precisa documentação nos arquivos e bibliotecas, obriga a recorrer às fontes da suposição que, não primando pela veracidade, são as únicas capazes de suprir aquela deficiência
”.

Perfeitamente de acordo com Drumond quanto à necessidade do estudo das canções populares, como forma de compreensão do povo e também quanto à dificuldade que tal empresa representa. Mas estamos em crer que Drumond comete aqui um erro imperdoável: ter direccionado as suas pesquisas apenas para os arquivos e bibliotecas em detrimento de fontes populares. Acreditamos que por essa altura existiria ainda um considerável número de bons informadores. De homens e mulheres portadores dessa cultura secular que nenhuma escola ensina, que flúi naturalmente como a água jorra da fonte, que resulta da prática continuada e apaixonada, que se recebe e se dá como se fosse a nossa maior fortuna.

Hoje sim, será difícil, muito mais difícil encontrar informadores com este perfil.
Isto porque “ao contrário de outros documentos, escritos ou pintados guardados em arquivos; das pedras e utensílios expostos ou escondidos debaixo da terra, objecto da arqueologia; do património construído, mesmo que degradado, a música popular de tradição oral extingue-se com a morte dos intérpretes” como lemos num texto de Adelino Cardoso na Revista do Jornal Expresso de 25 de Outubro de 1997.
Esta opinião obtém eco e concordância num outro texto, este pela pena autorizada de José Alberto Sardinha, advogado de Torres Vedras que, nas horas vagas e ao longo de mais de 30 anos veste a pele de investigador e se dedica à recolha da música tradicional: “Todos os dias se perdem exemplares musicais de grande riqueza. Do que se perde muito há que nunca se saberá o que era. Há coisas, portanto, já irrecuperáveis. A música tradicional tem uma base funcional: quando uma função termina a música passa a um estado de vigília até morrer o portador. Sobrevive na memória dos últimos executantes e depois cessa por falta de transmissão. Parte do que ainda hoje se grava já só subsiste na memória dos tocadores, sobretudo nos cantos de trabalho, porque desapareceram as respectivas tarefas. As músicas bailadas vão subsistindo nos ranchos folclóricos, em estado de alguma degradação e adulteração, porque já não há bailes rurais; subsistem alguns grupos instrumentais e as tunas de convívio vicinal”.

Fica feito o aviso à navegação: não podemos perder mais tempo, se é que ainda nos resta alguma esperança de vir-mos a encontrar o último informador.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

RESERVA CULTURAL

Em 1997 participei no III Congresso da Federação do Folclore Português que se realizou na Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. As naturais expectativas de que era portador saíram goradas. Disso mesmo dei conta no final da reunião magna do organismo que se diz defensor dos valores patrimoniais da cultura popular portuguesa. Nessa minha curta e única intervenção comecei por dizer com algum nervosismo: “Vim aqui com muitas dúvidas e saio daqui com o dobro delas”. Por toda a sala ecoou uma “bruá” provocado por uma risada que até hoje me mantém na dúvida se seria de consentimento ou de reprovação. Esse lapso de tempo foi suficiente para recuperar a coragem que é necessária para falar perante tão numerosa e “esclarecida” plateia. Puxei da folha A4 na qual havia anotado, minutos antes, uma ideia que me ocorrera e que agora partilho com todos os leitores deste espaço. Disse eu:
“- Venho de uma Ilha, de uma Região, e em particular de uma cidade que é património da humanidade. A primeira cidade portuguesa a ser incluída na honrosa lista da UNESCO;
- De uma Região e de uma cidade em que a consciência colectiva de preservação se confunde com o ar que respiramos, com o pão que comemos;
- De uma Região e de uma cidade em que todos os dias se levantam novas questões, muitas delas com origem nas soluções de ontem;
- A minha ilha, a terceira por ordem das descobertas, não tanto por outra qualquer ordem de valor, há 35/40 anos era uma das mais desenvolvidas do arquipélago;
-Tinha acesso, por exemplo, à imprensa escrita diária do continente, levada pelos navios Carvalho Araújo ou Lima, de 15 em 15 dias, isto se o tempo não virasse a sul ou sudeste e enchesse a angra, que deu nome à minha cidade, de branca espuma, qual lenço num aceno de “adeus” até à volta;
- E porque 15 dias passados no isolamento da ilha representam muitas saudades, liras e tiranas, não tanto as chamarritas porque essas são para enaltecer a alegria da chegada, do reencontro, do abraço;
- E porque 15 dias de isolamento na ilha nos obrigam a parar no tempo, a viver o presente continuando no passado, muito do que era ainda é;
- Não tanto na minha ilha, porque já é uma ilha “evoluída”, mas nas ilhas de baixo, nas mais afastadas do centro, naquelas em que ainda experimentam o isolamento de 15 dias, naquelas em que as gentes gastam o olhar no horizonte confundindo-o com a esperança;
- Nessas ilhas, não já na minha, ainda se toca, canta e “bailha” de forma espontânea.
Dois exemplos:
Graciosa – pequena ilha. São pouco mais de cinco mil os seus habitantes. Famosa pela alegria das suas gentes. A ilha em que o Carnaval começa a seguir à Páscoa. Sim, à Páscoa do ano anterior, quando, depois do descanso imposto pelo calendário litúrgico da Quaresma se começa a pensar, a idealizar e a organizar a folia do próximo ano, mantida em escrupuloso segredo até à hora. No intervalo dos muitos bailes, nas sociedades e clubes da ilha, enquanto os conjuntos descansam, entram tocadores de viola e cantadores e forma-se o baile de roda em que, novos e velhos, dançam espontaneamente as modas tradicionais;
O Corvo – 17km2, pouco mais de trezentos habitantes. A mais pequena das açorianas ilhas do Atlântico. Imaginem uma romaria no continente, pequena obrigatoriamente, assim é a ilha do Corvo. Todos bailam, cantam ou tocam de forma espontânea. Toda a vivência é condicionada pela tradição. Os mais velhos têm lugar de destaque Outeiro e a sua voz, os seus conselhos e, por vezes, apenas os seus olhares ainda têm significado. Aqui ainda não houve passado.
É neste contexto que formulo as seguintes questões:
1 – Deve-se ou não incentivar e apoiar a formação de Grupos Folclóricos nestas ilhas?
2 – Se sim, a que época se devem reportar as referências?
3 – Perante um caso único, particular e peculiar da cultura popular, onde ainda não aconteceu a inevitável rotura, podemos ou não pensar na criação de uma zona de “Reserva Cultural” na Ilha do Corvo?
Estarão aqui sedimentadas, porventura, as últimas reminiscências da cultura do “povo” português.”
Claro está que estas minhas questões não obtiveram eco, nem sequer foram merecedoras de resposta. Confesso que nem dela estava à espera.
O articulado, condimentado com sarcasmo e algum cinismo, admito, tinha tão só a intenção de provocar (e isso acho que consegui) aqueles que, do alto da sua cátedra, anunciam resposta para tudo.
No entanto as questões que levantei são, quanto a mim, verdadeiras, actuais e muito sérias merecendo, no mínimo, alguma reflexão. Ou não?

GRUPO FOLCLÓRICO DA ILHA TERCEIRA


No ano de 1955, na freguesia de S. Bartolomeu dos Regatos, com o patrocínio da então Comissão Regional de Turismo, apareceu com o nome de “Grupo Folclórico da Ilha Terceira” o nosso primeiro agrupamento de “folclore”. Alguns anos mais tarde mudou o nome para “Grupo Folclórico Padre Tomás de Borba” sendo vulgarmente conhecido como “Grupo do Tio José da Lata”. Homens como o Dr. Henrique Brás, Eduardo Gomes da Silva, Leonilde Martins, Heldo Braga, Laureano Correia dos Reis, José da Rocha Mancebo e José de Sousa Martins (conhecido por todos como José da Lata e que foi seu mandador durante algum tempo) entre outros, foram responsáveis pelo seu aparecimento e manutenção durante os onze anos da sua existência.
A sua indumentária era uniforme e foi idealizada pelo “mestre” Maduro Dias, com base no traje de cerimónia de finais do Sec. XVII, que é vulgarmente conhecido como “de barrete de orelhas”, para os homens e no “vestido de chita com saia de ombros” para as mulheres.
Durante esse período apareceu na freguesia de S. Sebastião um grupo folclórico infantil, sob a orientação do Padre Coelho de Sousa, que teve um tempo de vida muito curto, não mais do que dois ou três anos.
Nessa altura, e estamos a falar de meados da década de cinquenta do sec. XX, todas as pessoas adultas tinham ainda bem presente, por terem participado ou apenas por terem visto, a forma como, pelos mais variados motivos, as pessoas se juntavam em roda e dançavam, cantando e tocando, as modas de tradição regional.
Estávamos num período de pós guerra. Tudo mudava de uma forma mais rápida do que se vira até então. E nós, Terceirenses, sentíamo-nos protagonistas dessa mudança, mercê da presença dos Ingleses, primeiro, depois dos Americanos e mesmo dos Portugueses do continente que, em grande número, constituíam as forças militares aqui estacionadas e que nos ofereciam, a cada momento, a mais diversificada gama de novidades que iam desde os hábitos alimentares, de vestir, de falar até a novos hábitos sociais, onde poderemos englobar os novos gostos musicais.
O contacto com estes novos valores era cada vez maior tanto quanto era o número de Terceirenses a trabalhar para estas forças. Mas os que com eles não tinham uma relação de trabalho encontravam-na, com relativa facilidade, mercê da proliferação dos clubes sociais e dos eventos que neles se realizavam, não só dentro da Base militar como também no seu exterior, nas suas zonas limítrofes, nomeadamente nas então Vila da Praia da Vitória e freguesia das Lajes.
Os bailes ao som de violas e das cantigas tradicionais que aconteciam nas casas de mordomia ou nos terreiros, começam a ser substituídos pelos que se iam realizando ao som de “swings” e “fox-trots” que as novas orquestras interpretavam com maior ou menor desembaraço. Em alguns cafés de Angra e Praia da Vitória são colocados à disposição dos clientes pianos que são tocados por mãos vindas de outras paragens e que deles tiram sons novos e ritmos modernos.
Para além destes, a vulgarização dos aparelhos receptores de rádio, o cinema e, de uma forma mais restrita, mas não menos significativa, a televisão americana da base aérea, foram também veículos de introdução de novos valores que competiam com demolidora desigualdade com os que caracterizavam a nossa ancestral cultura.
Não é de estranhar pois o rompimento brusco com o antigo (entenda-se fora de moda) e a assimilação rápida de novas e, quiçá, mais atraentes formas de estar e de comportamento colectivo.
Julgamos ver nesta época, de uma forma clara, a passagem do tempo de um período de relativo isolamento, em que tudo acontecia de uma forma naturalmente lenta, ao ritmo do próprio tempo, para outro de progressiva massificação, prenúncio da actual globalização de comportamentos.
Mas voltemos ao “Grupo Folclórico da Ilha Terceira”. A pergunta que se nos coloca de uma forma pertinente é: O que teria levado um grupo de pessoas, elas próprias intervenientes espontâneos dos “balhos” populares, músicos, cantadores e mandadores, a criarem um agrupamento “folclórico” que é, pela sua génese e características, o principal responsável pela adulteração da forma e do modo, das motivações e dos próprios objectivos do canto e da dança enquanto elemento da cultura popular? Teriam eles por objectivo substituir o povo? Ou antes teriam eles a consciência de que as transformações que decorriam à sua volta eram, inevitavelmente, um perigo eminente para a própria cultura de que eles eram elementos activos? E o grupo infantil de S. Sebastião: o que levaria o Padre Coelho de Sousa e seus colaboradores a assumirem a responsabilidade de pôr crianças a dançar as modas tradicionais dos adultos? Certamente que as motivações de então em nada seriam semelhantes àquelas que hoje estão na base da criação de novos grupos de “folclore”.
Na época em que estes agrupamentos aparecem, havia de uma forma mais ou menos generalizada no seio dos intelectuais locais alguma preocupação com os assuntos relacionados com a etnografia e o “folclore”. Sentia-se que, se nada fosse feito, estaria eminente a perca irremediável e irreversível de vectores importantes da nossa identidade cultural, cimentada em quase cinco séculos de permanente adaptação ao nosso meio, às várias influências exteriores e ao natural senso criativo que caracteriza qualquer povo.
Por providencial coincidência (ou talvez não), é nessa década que a BBC encomenda ao Prof. Artur Santos registos e estudos da música tradicional Açoriana. Esse trabalho, que também foi apoiado pela antiga Junta Geral do Distrito Autónomo de Angra do Heroísmo, só agora começa a ser convenientemente estudado e divulgado. É curioso notar que aí iremos encontrar como informadores alguns dos então elementos do “Grupo Folclórico da Ilha Terceira”, nomeadamente o José da Lata.
Outros tempos! Tempo em que a credibilidade de um Grupo de Folclore e dos seus elementos não era posta em causa.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

AS QUADRAS

Com o título “O MEIO ALQUEIRE” o meu amigo e distinto cronista Francisco dos Reis Maduro Dias escreveu a 3 de Setembro de 2000, no seu lugar semanal do Diário Insular "VELA DE ESTAI", um artigo no qual comentava o facto de se ter “construído” bem no meio da praça Velha, sobre a soberba manta de tear terceirense que ali se representa (por sinal da autoria de seu pai Mestre Maduro Dias), um “cerrado” onde decorreu uma “encenação” sobre o “ciclo do milho”.
Lá estavam as paredes de pedra bem tapada a delimitarem o cerrado, a terra, depois uns pés de milho e por fim decorreu a desfolhada.
Mais recentemente, por altura das Sanjoaninas de 2007, uma nova encenação desta feita a que chamaram o “ciclo da vinha”, em que se pretendia reconstituir na rua da Sé toda a faina agrícola que é inerente à cultura da vinha. Para tal apanharam uns pés de vinha e para compor o cenário uns araçaleiros e uns ramos de figueira, colocaram-nos ao longo do percurso e lá foram simulando todos os passos que o homem (ainda) dá desde a plantação da vinha até à colheita da uva.
Em qualquer uma destas reconstituições quem já sabia ficou a saber o mesmo, quem não sabia nada aprendeu. É que estas coisas, para terem o mínimo de credibilidade, e para atingirem os objectivos que se anunciam não podem ser só de faz de contas: faz de contas que estou a lavrar, faz de contas que o milho está a nascer, faz de contas que estou a sachar, faz de contas que aqui tem uvas, faz de contas que estou a vindimar, faz de contas…, faz de contas… .

Vem isto a propósito desta nova tendência que os grupos de folclore têm de recorrer às reconstituições.
Nada me move contra elas, antes pelo contrário, sou um forte defensor desta metodologia, desde que se tenham em linha de conta dois aspectos fundamentais: a "quadra" e o lugar.
Os “antigos” regulavam toda a sua actividade anual pelas “quadras” mais do que por qualquer folhinha do ano ou almanaque. Todas as coisas cabiam certinhas nos seus lugares e no seu tempo, na sua “quadra", numa sucessão harmoniosa de acontecimentos. Nada se repetia no mesmo ano. Por isso tudo era apetecível e aguardado sempre com entusiasmo e elevado grau de ansiedade. E isto tanto era verdade para as actividades de lazer como para as actividades agrícolas; para as épocas de reflexão e recolhimento como para as de exaltação e alegria.
Reconstituir é voltar a constituir, é repor, é voltar a fazer da mesma forma, nos mesmos ambientes, nos mesmos lugares, com o mesmo sentido, na mesma “quadra”, de uma forma coerente. Não faz sentido fazer uma reconstituição de uma vindima se não houver uvas; de uma matança de porco no pico do verão; de uma desfolhada na altura das sementeiras; de uma tosquia na força do Inverno. Matar o porco no Alto das Covas é tão falso como o “cerrado” da Praça Velha ou a vindima em pleno mês de Junho: nada faz sentido. Da mesma maneira que não faz sentido pôr um “maio” à janela no 1º de Abril, dizer petas no 1º de Maio, celebrar o Natal no 1º de Novembro ou pedir “pão-por-Deus a 25 de Dezembro. Se o objectivo é mostrar a quem nos visita estas actividades, e como não se consegue mostrá-las todas de uma só vez, então que se reconstitua cada coisa no seu tempo certo e em sítios adequados para cada situação.
Infelizmente hoje assistimos à generalização desta conduta: o “Entrudo” tanto se antecipa a ele próprio como entra pela Quaresma dentro; o S. João com as suas marchas invade todos os outros padroeiros; o próprio Espírito Santo está tão desorientado que também já perdeu a sua “quadra” e o seu lugar: já O temos visto, por aí, em desfiles e cortejos etnográficos.
Para além da minha preocupação como individuo e como cidadão, acresce a do “folclorista”: é que todas estas tropelias acontecem com a chancela dos Grupos de Folclore. São eles ou é a partir deles que quase todas estas coisas acontecem. Com todo o empenho e a melhor das intenções dos seus elementos, é certo, mas também com muita ignorância e ligeireza dos seus responsáveis.
Os Grupos de Folclore são agentes culturais que têm, entre outras, a função de perpetuar as características que nos identificam e nos diferenciam dos outros: primeiro para que nós não as esqueçamos. Só depois para que os outros as vejam. Mas sempre no mais escrupuloso respeito pela verdade.

O COFIT E O FESTIVAL INTERNACIONAL DE FOLCLORE DOS AÇORES

Teve lugar no passado dia 18 de Agosto o espectáculo de encerramento do maior Festival de Folclore dos Açores, organizado pelo COFIT – Comité Organizador de Festivais da Ilha Terceira. A Praça Velha, cenário escolhido pelo terceiro ano consecutivo pela actual estrutura directiva do Festival, encheu-se de gente - mais de 1500 pessoas no dizer dos seus responsáveis - que, numa demonstração de apetência para este tipo de eventos, não regateou aplausos aos doze Grupos participantes.
Depois de alguns anos mais ou menos conturbados e de indefinições, em que as sucessivas direcções do Comité não puderam ou não souberam dar sequência aos bons auspícios dos primeiros anos, é de toda a justiça realçar e aplaudir o trabalho dos seus actuais responsáveis.
A questão fundamental é perceber como é que um festival de folclore nascido e criado no meio do Atlântico, nos Açores, contra todos os condicionalismos por demais conhecidos, conseguiu (com altos e baixos, é certo) sobreviver e, prestes a completar um quarto de século, demonstrar tamanha pujança. Esta questão é tão mais pertinente quando temos notícia de inúmeros festivais no continente, alguns deles carismáticos, que se vão afogando na sua própria saliva.
Claro que um empreendimento com a dimensão do evento deste ano não acontece do nada: tem atrás de si uma história, uma longa história, ela própria mais antiga do que o próprio festival.
Com efeito de 1 a 29 de Agosto de 1981 decorreram em Angra do Heroísmo, no Jardim Duque da Terceira, as “Primeiras Jornadas de Folclore da Ilha Terceira”, organizadas pelo realizador do programa “Nocturno 81” do Rádio Clube de Angra João Manuel Aranda e Silva. Neste evento participaram os Grupos Folclóricos Terceirenses: Doze Ribeiras, de Balhos e Cantares, Os Bravos, Canção Regional Terceirense e Sapateia Açoriana.
Sobre este acontecimento a imprensa escrita de então refere: “Foram enfim, jornadas que encheram de povo o jardim. Que agradaram a todos e até especialmente no último sábado – aos estrangeiros que por aqui passaram. A julgar pela opinião de todos os grupos é uma iniciativa a dar seguimento. E até porque não o embrião de um futuro festival de folclore?...” (DI de 1 de Set. de 1981).
No ano seguinte “Mais de duas mil e quinhentas pessoas encheram… a Praça de Touros de S. João, onde assistiram ao encerramento das Segundas jornadas Folclóricas Verão 82,… Em jeito de conclusão, merecem nota máxima estas jornadas. Porque se destinam a preservar a cultura popular e a aproximar o povo. …” (DI 24 de Agosto de 1982).
Depois do sucesso alcançado com estas Jornadas, embrião do Festival Internacional de Folclore dos Açores, manifestado sobretudo pela aderência popular, não era difícil adivinhar que este projecto, que crescia de audácia na mesma medida do entusiasmo dos seus colaboradores, tinha pernas para andar.
Porquê?
Porque o seu fundador e primeiro impulsionador, Aranda e Silva sugeria já uma estrutura básica e uma orgânica alicerçada em 5 aspectos fundamentais: 1- tinha objectivos; 2- percebia-se já uma organização directiva funcional; 3- tinha definido uma data de referência – 15 de Agosto – em torno da qual se construía todo o programa; 4- tinha em atenção questões de pormenor, tais como as condições de palco, de som, de cenário, etc; 5- tinha espírito crítico e de análise.
Por outro lado soube cultivar a ideia de que este seria o Festival de Folclore por excelência de todos os Grupos da Ilha, evitando-se assim a proliferação, vulgarização e a banalização dos festivais. Esse entendimento, que perdurou entre nós até há bem pouco tempo, não só conseguiu aquele objectivo como também concentrou nele todos os esforços e disponibilidades que fluíam dos próprios Grupos.

As expectativas criadas o ano passado e reforçadas com as deste ano de 2007, elevaram para bem mais alto a fasquia do Festival do próximo ano.
A eminente inclusão do Festival na lista do CIOF, batalha travada arduamente pela actual estrutura directiva do COFIT, vem dar outra responsabilidade aos seus organizadores. A concretizar-se, esta inclusão acontece por mérito próprio e não a troco de qualquer favor
O que queremos e fazemos votos é que, apesar das mudanças directivas que se irão verificar no COFIT num futuro próximo por via de eleições que estão marcadas para o fim deste ano, o próximo Festival Internacional de Folclore dos Açores mantenha a qualidade conseguida nos últimos três anos e continue a ser, (porque não dizê-lo?), “O Maior Festival de Folclore dos Açores" http://www.youtube.com/watch?v=2WNWgvPLhC8&eurl

UMA QUESTÃO DE PATERNIDADE


Entre 29 de Outubro a 5 de Dezembro de 1963, esteve nos Açores uma equipe coordenada por Ernesto Veiga de Oliveira com o objectivo de recolher elementos para a futura colecção de instrumentos Musicais Populares Portugueses. No seu relatório de trabalho de campo, e no que se refere à 2ª estadia na Ilha Terceira, que decorreu entre os dias 27 a 30 de Novembro, lê-se: “Num fim de tarde que se prolongou até cerca das 11 horas, reunimo-nos em casa do senhor Henrique Borba, com o José Martins Pereira – Zé da Lata – o Laureano Correia dos Reis e mais um rapaz e uma rapariga, irmãos, cantadores da Rádio Angra. O Zé da Lata estava constipado, mas sempre cantou algumas coisas, e assim ouvimos um pouco desse folclore terceirense, dolente, romântico, de um italianismo afadistado de interesse reduzido. Em todo o caso as pessoas foram gentilíssimas e o Zé da Lata que é uma personalidade rica e pitoresca, transfigura-se quando canta, que é o seu meio natural.”

Por essa altura comentava uma turista francesa ao ver o Grupo Folclórico da Ilha Terceira (de saudosa memória): “…c'est trés monotone…”

Eis pois um retrato da nossa música popular à época em que supostamente começou a germinar a semente do que viria a ser o “Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense”, aquele que é neste momento o mais antigo grupo de folclore em actividade na ilha Terceira.

Ora a ideia e a proposta de criação de um grupo de folclore com as características das do GBCRT partiram da pessoa desse exímio músico que foi Henrique Borba, o anfitrião da equipa de Ernesto Veiga de Oliveira.
Apenas coincidência? A proximidade temporal entre os dois acontecimentos sugere-nos que não. O desalento das personalidades que constituíam a equipa de Ernesto Veiga de Oliveira, bem patente naquele relato, e o de Henrique Borba perante tão desanimador cenário terá sido objecto de conversa entre eles naquele fim de tarde de Novembro e, eventualmente, ter-se-ão aflorado algumas hipóteses no sentido de inverter tão preocupante situação.
A solução arquitectada por Henrique Borba era de absoluta rotura com todos os convencionalismos. De tal forma que sentiu necessidade de esclarecer sobre as motivações e os objectivos que nortearam todo o projecto. E fá-lo no discurso que proferiu no dia da primeira apresentação pública do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense, em 16 de Julho de 1966. Ouçamo-lo:

“Minhas Senhoras e meus Senhores

A comissão organizadora do grupo de bailados que vai apresentar-se deseja esclarecer o seguinte:
Não se pretende alterar o que uma tradição secular impôs como costume, mas apenas demonstrar como, dentro das nossas modas, se lhes pode dar uma interpretação coreográfica tão viva e animada como as do continente Português, ou tão subtil e delicada, como um passo de pavana ou um requebro de minuete.
Com o fim de pôr em prática tal demonstração, precisava-mos de uma entidade que nos dispensasse o seu auxílio e o seu apoio formal e absoluto para a consecução de um fim meramente cultural e também afectivo, pois pareceu-nos ser vantajoso e necessário, para despertar, tanto quanto possível na nossa mocidade, o interesse, a simpatia e o amor pelas canções da nossa Terra.
Porque, note-se, e isto é triste dizê-lo, a canção terceirense – aquilo que de mais representativo temos, em questão de arte, para nos distinguir neste isolamento insular em que vivemos – está em decadência e dentro de um quarto de século desaparecerá (embora latente na alma do povo rude), absorvida no cosmopolitismo do nosso meio, no cinema desbragado das cowboyadas, na canção exótica acompanhada a violas eléctricas e pancadaria de jazz trazidas através da rádio, sem um ideal e sem um sentimento que desperte no ânimo da gente moça uma parcela, mínima que seja, de conservar, a todo o transe, o património riquíssimo da canção terceirense.
Foi talvez pensando nisto que, exposta a ideia ao Senhor Manuel Vale, digníssimo Presidente da Direcção da Recreio dos Artistas, ele prontamente a acarinhou e a submeteu ao parecer dos membros da Direcção da sua presidência, que resolveram não só dar o palco do seu teatro ao ar livre para os ensaios do Grupo, como também patrocinar este empreendimento, concorrendo com as verbas necessárias para a sua realização e ainda com as despesas indispensáveis para a indumentária do Grupo….”

Sobre o papel – indispensável, afirmamos nós – desempenhado pela poetisa Maria Francisca Bettencourt, a Maria do Céu, Henrique Borba sente a mesma necessidade de esclarecer:

“A realização deste cometimento esteve a cargo de uma comissão composta pela Senhora D. Maria Francisca Bettencourt (Maria do Céu), pelo autor da ideia e pelos senhores Laureano Correia dos Reis, Rodolfo Brum e João Noronha de Borba, assistido pelo Senhor Cândido Félix, como delegado da Direcção da Recreio dos Artistas, de quem recebemos as maiores provas de interesse, de boa vontade e, sobretudo, de estímulo.”

Henrique Borba continua a sua esclarecimento aflorando algumas questões de pormenor, como sejam o nome a dar ao Grupo e o da adaptação da musical, e continua:

“Como prancha de salvação, surgiu-nos uma magnífica rapsódia para piano, em forma de suite, da autoria de Maria do Céu, génio de poetisa e de artista, em cuja alma Terceirense dançam e cantam constantemente as modas da sua querida terra, da ilha Rubra, como ela quer que lhe chamem nos lindos versos da sua autoria, que hoje serão recitados, em confirmação da cor rubra dos vestidos das raparigas deste grupo, executados também sob orientação de Maria do Céu.
Neste aspecto, o problema estava solucionado. A execução do piano poderia adaptar-se às violas de arame, bem como a um acordeão para tornar mais salientes os acompanhamentos e dar mais recreio sonoro ao conjunto musical, sobretudo para quando se houver de bailar sem piano.
Depois disto, tínhamos ainda o problema da interpretação coreográfica de cada moda.
Na verdade, como interpretar por um bailado animado melodias na sua maior parte constituídas por andamentos lentos, sem lhes alterar o ritmo? Foi ainda Maria do Céu que nos tirou de tal embaraço. Como deixámos dito, na sua alma de Terceirense, sensivelmente impressionada, bailam e cantam as nossas modas. Ela já as tinha cantado na sua rapsódia; faltava-lhe apenas exteriorizá-las coreograficamente. Foi isto o que fez e que V. Excias. dentro de momentos irão ver e apreciar, como apreciarão os versos de todas as cantigas que são também da sua autoria”.

Perfeitamente discutível quanto perigosa se utilizada de forma desadequada, esta nova metodologia teve e tem ainda, pelo menos, o mérito de agitar as consciências e de abrir novos caminhos para a representação “folclórica”.
Os 15 grupos de folclore que se formaram na ilha desde então e que mobilizam centenas de entusiastas, têm como referência esta nova matriz. Pena que, a maior parte deles, desconheçam por completo o trabalho que desenvolvem, embora o façam com paixão e irrepreensível entrega.