Em 1997 participei no III Congresso da Federação do Folclore Português que se realizou na Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. As naturais expectativas de que era portador saíram goradas. Disso mesmo dei conta no final da reunião magna do organismo que se diz defensor dos valores patrimoniais da cultura popular portuguesa. Nessa minha curta e única intervenção comecei por dizer com algum nervosismo: “Vim aqui com muitas dúvidas e saio daqui com o dobro delas”. Por toda a sala ecoou uma “bruá” provocado por uma risada que até hoje me mantém na dúvida se seria de consentimento ou de reprovação. Esse lapso de tempo foi suficiente para recuperar a coragem que é necessária para falar perante tão numerosa e “esclarecida” plateia. Puxei da folha A4 na qual havia anotado, minutos antes, uma ideia que me ocorrera e que agora partilho com todos os leitores deste espaço. Disse eu:
“- Venho de uma Ilha, de uma Região, e em particular de uma cidade que é património da humanidade. A primeira cidade portuguesa a ser incluída na honrosa lista da UNESCO;
- De uma Região e de uma cidade em que a consciência colectiva de preservação se confunde com o ar que respiramos, com o pão que comemos;
- De uma Região e de uma cidade em que todos os dias se levantam novas questões, muitas delas com origem nas soluções de ontem;
- A minha ilha, a terceira por ordem das descobertas, não tanto por outra qualquer ordem de valor, há 35/40 anos era uma das mais desenvolvidas do arquipélago;
-Tinha acesso, por exemplo, à imprensa escrita diária do continente, levada pelos navios Carvalho Araújo ou Lima, de 15 em 15 dias, isto se o tempo não virasse a sul ou sudeste e enchesse a angra, que deu nome à minha cidade, de branca espuma, qual lenço num aceno de “adeus” até à volta;
- E porque 15 dias passados no isolamento da ilha representam muitas saudades, liras e tiranas, não tanto as chamarritas porque essas são para enaltecer a alegria da chegada, do reencontro, do abraço;
- E porque 15 dias de isolamento na ilha nos obrigam a parar no tempo, a viver o presente continuando no passado, muito do que era ainda é;
- Não tanto na minha ilha, porque já é uma ilha “evoluída”, mas nas ilhas de baixo, nas mais afastadas do centro, naquelas em que ainda experimentam o isolamento de 15 dias, naquelas em que as gentes gastam o olhar no horizonte confundindo-o com a esperança;
- Nessas ilhas, não já na minha, ainda se toca, canta e “bailha” de forma espontânea.
Dois exemplos:
Graciosa – pequena ilha. São pouco mais de cinco mil os seus habitantes. Famosa pela alegria das suas gentes. A ilha em que o Carnaval começa a seguir à Páscoa. Sim, à Páscoa do ano anterior, quando, depois do descanso imposto pelo calendário litúrgico da Quaresma se começa a pensar, a idealizar e a organizar a folia do próximo ano, mantida em escrupuloso segredo até à hora. No intervalo dos muitos bailes, nas sociedades e clubes da ilha, enquanto os conjuntos descansam, entram tocadores de viola e cantadores e forma-se o baile de roda em que, novos e velhos, dançam espontaneamente as modas tradicionais;
O Corvo – 17km2, pouco mais de trezentos habitantes. A mais pequena das açorianas ilhas do Atlântico. Imaginem uma romaria no continente, pequena obrigatoriamente, assim é a ilha do Corvo. Todos bailam, cantam ou tocam de forma espontânea. Toda a vivência é condicionada pela tradição. Os mais velhos têm lugar de destaque Outeiro e a sua voz, os seus conselhos e, por vezes, apenas os seus olhares ainda têm significado. Aqui ainda não houve passado.
É neste contexto que formulo as seguintes questões:
1 – Deve-se ou não incentivar e apoiar a formação de Grupos Folclóricos nestas ilhas?
2 – Se sim, a que época se devem reportar as referências?
3 – Perante um caso único, particular e peculiar da cultura popular, onde ainda não aconteceu a inevitável rotura, podemos ou não pensar na criação de uma zona de “Reserva Cultural” na Ilha do Corvo?
Estarão aqui sedimentadas, porventura, as últimas reminiscências da cultura do “povo” português.”
Claro está que estas minhas questões não obtiveram eco, nem sequer foram merecedoras de resposta. Confesso que nem dela estava à espera.
O articulado, condimentado com sarcasmo e algum cinismo, admito, tinha tão só a intenção de provocar (e isso acho que consegui) aqueles que, do alto da sua cátedra, anunciam resposta para tudo.
No entanto as questões que levantei são, quanto a mim, verdadeiras, actuais e muito sérias merecendo, no mínimo, alguma reflexão. Ou não?
“- Venho de uma Ilha, de uma Região, e em particular de uma cidade que é património da humanidade. A primeira cidade portuguesa a ser incluída na honrosa lista da UNESCO;
- De uma Região e de uma cidade em que a consciência colectiva de preservação se confunde com o ar que respiramos, com o pão que comemos;
- De uma Região e de uma cidade em que todos os dias se levantam novas questões, muitas delas com origem nas soluções de ontem;
- A minha ilha, a terceira por ordem das descobertas, não tanto por outra qualquer ordem de valor, há 35/40 anos era uma das mais desenvolvidas do arquipélago;
-Tinha acesso, por exemplo, à imprensa escrita diária do continente, levada pelos navios Carvalho Araújo ou Lima, de 15 em 15 dias, isto se o tempo não virasse a sul ou sudeste e enchesse a angra, que deu nome à minha cidade, de branca espuma, qual lenço num aceno de “adeus” até à volta;
- E porque 15 dias passados no isolamento da ilha representam muitas saudades, liras e tiranas, não tanto as chamarritas porque essas são para enaltecer a alegria da chegada, do reencontro, do abraço;
- E porque 15 dias de isolamento na ilha nos obrigam a parar no tempo, a viver o presente continuando no passado, muito do que era ainda é;
- Não tanto na minha ilha, porque já é uma ilha “evoluída”, mas nas ilhas de baixo, nas mais afastadas do centro, naquelas em que ainda experimentam o isolamento de 15 dias, naquelas em que as gentes gastam o olhar no horizonte confundindo-o com a esperança;
- Nessas ilhas, não já na minha, ainda se toca, canta e “bailha” de forma espontânea.
Dois exemplos:
Graciosa – pequena ilha. São pouco mais de cinco mil os seus habitantes. Famosa pela alegria das suas gentes. A ilha em que o Carnaval começa a seguir à Páscoa. Sim, à Páscoa do ano anterior, quando, depois do descanso imposto pelo calendário litúrgico da Quaresma se começa a pensar, a idealizar e a organizar a folia do próximo ano, mantida em escrupuloso segredo até à hora. No intervalo dos muitos bailes, nas sociedades e clubes da ilha, enquanto os conjuntos descansam, entram tocadores de viola e cantadores e forma-se o baile de roda em que, novos e velhos, dançam espontaneamente as modas tradicionais;
O Corvo – 17km2, pouco mais de trezentos habitantes. A mais pequena das açorianas ilhas do Atlântico. Imaginem uma romaria no continente, pequena obrigatoriamente, assim é a ilha do Corvo. Todos bailam, cantam ou tocam de forma espontânea. Toda a vivência é condicionada pela tradição. Os mais velhos têm lugar de destaque Outeiro e a sua voz, os seus conselhos e, por vezes, apenas os seus olhares ainda têm significado. Aqui ainda não houve passado.
É neste contexto que formulo as seguintes questões:
1 – Deve-se ou não incentivar e apoiar a formação de Grupos Folclóricos nestas ilhas?
2 – Se sim, a que época se devem reportar as referências?
3 – Perante um caso único, particular e peculiar da cultura popular, onde ainda não aconteceu a inevitável rotura, podemos ou não pensar na criação de uma zona de “Reserva Cultural” na Ilha do Corvo?
Estarão aqui sedimentadas, porventura, as últimas reminiscências da cultura do “povo” português.”
Claro está que estas minhas questões não obtiveram eco, nem sequer foram merecedoras de resposta. Confesso que nem dela estava à espera.
O articulado, condimentado com sarcasmo e algum cinismo, admito, tinha tão só a intenção de provocar (e isso acho que consegui) aqueles que, do alto da sua cátedra, anunciam resposta para tudo.
No entanto as questões que levantei são, quanto a mim, verdadeiras, actuais e muito sérias merecendo, no mínimo, alguma reflexão. Ou não?
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