Entre 29 de Outubro a 5 de Dezembro de 1963, esteve nos Açores uma equipe coordenada por Ernesto Veiga de Oliveira com o objectivo de recolher elementos para a futura colecção de instrumentos Musicais Populares Portugueses. No seu relatório de trabalho de campo, e no que se refere à 2ª estadia na Ilha Terceira, que decorreu entre os dias 27 a 30 de Novembro, lê-se: “Num fim de tarde que se prolongou até cerca das 11 horas, reunimo-nos em casa do senhor Henrique Borba, com o José Martins Pereira – Zé da Lata – o Laureano Correia dos Reis e mais um rapaz e uma rapariga, irmãos, cantadores da Rádio Angra. O Zé da Lata estava constipado, mas sempre cantou algumas coisas, e assim ouvimos um pouco desse folclore terceirense, dolente, romântico, de um italianismo afadistado de interesse reduzido. Em todo o caso as pessoas foram gentilíssimas e o Zé da Lata que é uma personalidade rica e pitoresca, transfigura-se quando canta, que é o seu meio natural.”
Por essa altura comentava uma turista francesa ao ver o Grupo Folclórico da Ilha Terceira (de saudosa memória): “…c'est trés monotone…”
Eis pois um retrato da nossa música popular à época em que supostamente começou a germinar a semente do que viria a ser o “Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense”, aquele que é neste momento o mais antigo grupo de folclore em actividade na ilha Terceira.
Ora a ideia e a proposta de criação de um grupo de folclore com as características das do GBCRT partiram da pessoa desse exímio músico que foi Henrique Borba, o anfitrião da equipa de Ernesto Veiga de Oliveira.
Apenas coincidência? A proximidade temporal entre os dois acontecimentos sugere-nos que não. O desalento das personalidades que constituíam a equipa de Ernesto Veiga de Oliveira, bem patente naquele relato, e o de Henrique Borba perante tão desanimador cenário terá sido objecto de conversa entre eles naquele fim de tarde de Novembro e, eventualmente, ter-se-ão aflorado algumas hipóteses no sentido de inverter tão preocupante situação.
A solução arquitectada por Henrique Borba era de absoluta rotura com todos os convencionalismos. De tal forma que sentiu necessidade de esclarecer sobre as motivações e os objectivos que nortearam todo o projecto. E fá-lo no discurso que proferiu no dia da primeira apresentação pública do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense, em 16 de Julho de 1966. Ouçamo-lo:
“Minhas Senhoras e meus Senhores
A comissão organizadora do grupo de bailados que vai apresentar-se deseja esclarecer o seguinte:
Não se pretende alterar o que uma tradição secular impôs como costume, mas apenas demonstrar como, dentro das nossas modas, se lhes pode dar uma interpretação coreográfica tão viva e animada como as do continente Português, ou tão subtil e delicada, como um passo de pavana ou um requebro de minuete.
Com o fim de pôr em prática tal demonstração, precisava-mos de uma entidade que nos dispensasse o seu auxílio e o seu apoio formal e absoluto para a consecução de um fim meramente cultural e também afectivo, pois pareceu-nos ser vantajoso e necessário, para despertar, tanto quanto possível na nossa mocidade, o interesse, a simpatia e o amor pelas canções da nossa Terra.
Porque, note-se, e isto é triste dizê-lo, a canção terceirense – aquilo que de mais representativo temos, em questão de arte, para nos distinguir neste isolamento insular em que vivemos – está em decadência e dentro de um quarto de século desaparecerá (embora latente na alma do povo rude), absorvida no cosmopolitismo do nosso meio, no cinema desbragado das cowboyadas, na canção exótica acompanhada a violas eléctricas e pancadaria de jazz trazidas através da rádio, sem um ideal e sem um sentimento que desperte no ânimo da gente moça uma parcela, mínima que seja, de conservar, a todo o transe, o património riquíssimo da canção terceirense.
Foi talvez pensando nisto que, exposta a ideia ao Senhor Manuel Vale, digníssimo Presidente da Direcção da Recreio dos Artistas, ele prontamente a acarinhou e a submeteu ao parecer dos membros da Direcção da sua presidência, que resolveram não só dar o palco do seu teatro ao ar livre para os ensaios do Grupo, como também patrocinar este empreendimento, concorrendo com as verbas necessárias para a sua realização e ainda com as despesas indispensáveis para a indumentária do Grupo….”
Sobre o papel – indispensável, afirmamos nós – desempenhado pela poetisa Maria Francisca Bettencourt, a Maria do Céu, Henrique Borba sente a mesma necessidade de esclarecer:
“A realização deste cometimento esteve a cargo de uma comissão composta pela Senhora D. Maria Francisca Bettencourt (Maria do Céu), pelo autor da ideia e pelos senhores Laureano Correia dos Reis, Rodolfo Brum e João Noronha de Borba, assistido pelo Senhor Cândido Félix, como delegado da Direcção da Recreio dos Artistas, de quem recebemos as maiores provas de interesse, de boa vontade e, sobretudo, de estímulo.”
Henrique Borba continua a sua esclarecimento aflorando algumas questões de pormenor, como sejam o nome a dar ao Grupo e o da adaptação da musical, e continua:
“Como prancha de salvação, surgiu-nos uma magnífica rapsódia para piano, em forma de suite, da autoria de Maria do Céu, génio de poetisa e de artista, em cuja alma Terceirense dançam e cantam constantemente as modas da sua querida terra, da ilha Rubra, como ela quer que lhe chamem nos lindos versos da sua autoria, que hoje serão recitados, em confirmação da cor rubra dos vestidos das raparigas deste grupo, executados também sob orientação de Maria do Céu.
Neste aspecto, o problema estava solucionado. A execução do piano poderia adaptar-se às violas de arame, bem como a um acordeão para tornar mais salientes os acompanhamentos e dar mais recreio sonoro ao conjunto musical, sobretudo para quando se houver de bailar sem piano.
Depois disto, tínhamos ainda o problema da interpretação coreográfica de cada moda.
Na verdade, como interpretar por um bailado animado melodias na sua maior parte constituídas por andamentos lentos, sem lhes alterar o ritmo? Foi ainda Maria do Céu que nos tirou de tal embaraço. Como deixámos dito, na sua alma de Terceirense, sensivelmente impressionada, bailam e cantam as nossas modas. Ela já as tinha cantado na sua rapsódia; faltava-lhe apenas exteriorizá-las coreograficamente. Foi isto o que fez e que V. Excias. dentro de momentos irão ver e apreciar, como apreciarão os versos de todas as cantigas que são também da sua autoria”.
Perfeitamente discutível quanto perigosa se utilizada de forma desadequada, esta nova metodologia teve e tem ainda, pelo menos, o mérito de agitar as consciências e de abrir novos caminhos para a representação “folclórica”.
Os 15 grupos de folclore que se formaram na ilha desde então e que mobilizam centenas de entusiastas, têm como referência esta nova matriz. Pena que, a maior parte deles, desconheçam por completo o trabalho que desenvolvem, embora o façam com paixão e irrepreensível entrega.
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