O Tio Alvarino da Serreta
(foto retirada do livro "Filósofos da Rua" de Augusto Gomes)
Quando conheci o Tio Frederico,na década de 70 de 1900, já ele me parecia velho. Tinha “venda” de mercearia e bebidas na fronteira de Santa Bárbara com as Doze Ribeiras. Era um conforto os minutos que, por motivos profissionais, passava com ele na visita semanal das terças. Sempre cheio de “salamaleques” todas as conversas terminavam num irrecusável “mata-bicho”. Testemunhas deste cerimonial eram os três ou quatro pequenos cálices de vidro lascados que conheciam o hálito de todos os fregueses. Para mim estava sempre reservado o do Tio Alvarino. O tempo foi passando e com ele foi crescendo a minha curiosidade de conhecer o homem que ficara perpetuado num pequeno e lascado cálice de vidro da venda do Tio Frederico. Para não ser muito directo com receio de alguma indiscrição, perguntei um dia ao meu bom amigo: “deve ter sido uma pessoa importante, este Tio Alvarino? Pelo sorriso do meu interlocutor tive a certeza de que a pergunta pecava por tardia. O seu corpo baixo e franzino, agitou-se realçando o nervoso miudinho que o caracterizava.
- Mais um “calsinhos”, disse ele (para mim uma aguardente traçada com aniz e para ele um whisky, por lhe ter sido proibido pelo médico beber bebidas brancas).
- O tio Alvarino era um “carroceiro” da Serreta que todos os dias que Nosso Senhor “botava no mundo” aparelhava o seu inseparável “gigante” e, manhã cedo, ala até à cidade. Para baixo, sempre ligeiro, recolhia ele as notas de encomendas para comprar nas lojas de Angra. Ao fim do dia, no regresso, carroça carregada, a viagem era bem mais lenta. Em cada venda apeava-se o Tio Alvarino e, depois de entregue a mercadoria, bebia o seu “calsinho”, isto em todas as paragens e também na do Tio Frederico. Claro que o resultado final era uma diária e quase permanente carraspana. Aconselhavam-no os amigos: “Ó Alvarino, estás a dar cabo de ti!” mas nada, era sempre a mesma coisa todos os dias.
- “Ó Alvarino, coitada da tua mulher” – disse-lhe um dia o Tio Frederico enquanto atestava o cálice que hoje prepectua o seu nome – “Chegares a casa todos os dias bêbado, sem te lamberes. Para te sofrer, só mesmo uma santa!” – e reforçou – “Coitada! Ela é mesmo uma santa!
Sem espanto, e acenando em consentimento, enquanto limpava a boca à manga do surrado capote, respondeu de pronto o Tio Alvarino: -“É uma santa sim senhor! Mas... a mim o deve!”
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